sábado, 6 de maio de 2017

SEM SABOR: Destruição ambiental torna escassos itens típicos da culinária de AL

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Ação predatória do homem e a falta de planejamento para o crescimento das cidades são apontadas como causas para o problema


A gastronomia alagoana está ficando mais pobre. Com o desmatamento, a degradação, a caça e a pesca predatórias, além do crescimento desordenado das cidades, animais e frutos que são a base de pratos típicos do estado estão, aos poucos, desaparecendo. Antes abundantes, frutas como o ouricuri, a mangaba e o umbu não mais são encontradas tão facilmente. Animais também estão sumindo das lagoas e mangues - ecossistemas tão maltratados pelo homem - a ponto de a pesca ser proibida ou permitida apenas de forma restrita, como é o caso do caranguejo Guaiamum. A devastação está levando consigo não só os elementos da fauna e da flora, mas retirando o sabor de iguarias da culinária de Alagoas.

O problema já existe há algum tempo, mas vem se agravando, a ponto de os empresários que trabalham no ramo precisarem comprar matéria-prima de outros estados para conseguir produzir as delícias da culinária alagoana. É o caso do Engenho e Restaurante São Lourenço, localizado na cidade de Água Branca, que tem como matéria-prima para suas receitas diversos elementos típicos do Sertão. Um deles é o ouricuri, tipo de coco que serve como base para a fabricação de um sorvete que é um dos carros-chefes da casa. 


Fabricada de maneira artesanal, assim como todos os produtos comercializados no estabelecimento, a sobremesa tem um sabor marcante e é bem aceita pelos clientes. O gerente de marketing Igor Brandão conta que o doce é produzido há sete anos e já se tornou tradicional na localidade. Com uma dificuldade cada vez maior para comprar o ouricuri em grande quantidade, ele explica que esse é o único prato que tem o coquinho como base, apesar de que ele poderia ser usado em muitas outras iguarias - como na fabricação de cocadas. 



Brandão diz que o fruto é geralmente comprado nas feiras-livres da região, mas às vezes, com uma quantidade limitada disponível, surge a necessidade de trazê-lo da cidade de Paulo Afonso, na Bahia. "A produção em Alagoas é derivada da agricultura familiar de subsistência. O ouricurizeiro é cultivado por famílias quilombolas em Água Branca, que além de comercializarem os frutos, também utilizam as palhas da planta para produção de artesanato. Algumas vezes, já compramos essa matéria-prima da Bahia porque não encontramos quantidade suficiente por aqui", explica.

Especialistas apontam como causas do problema a expansão imobiliária e a atividade de pasto, que têm ocupado os espaços que antes eram das palmeiras - planta que estava presente em todo o litoral de Alagoas, além da Região do Agreste, Médio Sertão inteiro e parte do Alto Sertão. Típico de solo arenoso, o ouricurizeiro é muito usado na confecção de produtos artesanais, fato que também tem contribuído para o seu desaparecimento, pois a retirada das folhas para este fim e para a confecção de vassouras tem diminuído a produção de frutos.

Como se todos esses problemas fossem poucos, há ainda a seca prolongada, que tem feito com que as folhas do ouricuri - planta bastante resistente à períodos de longa estiagem - sejam dadas como alimentos para o gado, o que interfere diretamente na produção dos coquinhos. Para se ter uma ideia, em boas condições, um pé de ouricuri chega a colocar de 2 a 3 mil frutos por ano. Com a retirada das folhas, esse quantitativo cai para, no máximo, 200 cocos.

Além de servir de base para produção de algumas delícias, o ouricuri ainda cumpre um papel importante no bioma da caatinga, no qual está inserido. Ele serve de alimento para espécies de aves, como araras e papagaios, mantendo um ecossistema equilibrado. Com o seu desaparecimento, esses animais também tendem a sofrer as consequências.






Ecossistemas nativos estão sendo substituídos 

A professora de Ecologia e Meio Ambiente da Universidade Federal de Alagoas, doutora em ecologia e recursos naturais, Flávia Moura, confirma o desaparecimento gradual de algumas espécies de plantas utilizadas na culinária do estado. Segundo ela, a substituição de florestas e ecossistemas nativos pela agricultura de subsistência é uma realidade em Alagoas que tem contribuído para o desmatamento de espécies antes bastante comuns.

Além destes problemas, a especialista reforça ainda que em Alagoas falta incentivo por parte dos órgãos governamentais no sentido de se criar cooperativas que possam fomentar o beneficiamento da produção destes alimentos. "A quebra do ouricuri, por exemplo, é feita toda manualmente. Aqui em Alagoas não existe um maquinário específico para isso. Se houvesse um investimento público ou privado para se fazer uma máquina de quebrar coco, como a que existe na Bahia, esses catadores teriam este produto beneficiado rapidamente e eu tenho certeza que ele voltaria para o mercado com mais força", analisa.


Flávia destaca necessidade de um plano de manejo para proteger as espécies da Flora alagoana




O sabor doce e ácido da mangaba também está comprometido


Assim como o ouricuri, a mangaba tem se tornado menos frequente no litoral alagoano, onde costumava ser abundante. E não precisa ser especialista para perceber que algo está fazendo desaparecer esses frutos que têm como características o doce e, ao mesmo tempo, a acidez - que rendem um suco delicioso. Basta observar as banquinhas de frutas à beira da estrada, em especial na Região Norte de Alagoas, onde elas eram protagonistas. Agora, dificilmente, aparecem por lá.
Os motivos da escassez são semelhantes aos que têm feito o ouricuri sumir: o crescimento desordenado das cidades e a falta de uma cadeia produtiva de beneficiamento da fruta. Um produto que antes era visto em toda a extensão do litoral alagoano agora chega a ser trazido de Sergipe para Alagoas. Além do suco com sabor único, a mangaba também é muito utilizada para fazer compotas, geleias e sorvetes naturais.
Em Sergipe, o governo estadual incentivou a criação de cooperativas, deu assistência técnica para que as pessoas se organizassem, fez plano de manejo e criou legislação para que as catadoras tivessem livre acesso aos pés de mangaba considerados frutos do extrativismo -  produtos que por lei, mesmo dentro de uma propriedade particular, pertencem a qualquer pessoa que possa coletá-los.
"A mangaba pode ocorrer em todo o litoral de Alagoas, mas está desaparecendo por conta da expansão imobiliária. Na Área de Proteção Ambiental (APA) de Santa Rita, na Região Sul, por exemplo, você vê as mangabeiras sendo derrubadas para dar lugar a conjuntos habitacionais e condomínios. Os órgãos ambientais não têm se dedicado a proteger estes ecossistemas naturais. Os planos de manejo e de zoneamento da APA de Santa Rita demoraram muito para ficar prontos e lá é uma área de expansão com pressão política muito grande para ocupação", critica a ecologista Flávia Moura.
Suco feito com a mangaba agrada aos diversos paladares
De acordo com ela, ambientalistas têm tentado frear a ocupação em alguns pontos da APA, mas os condomínios estão aparecendo em todos os lugares. "Estão passando por cima da legislação e com a autorização dos órgãos competentes, que deveriam fiscalizar, mas que na verdade estão liberando licenças, desconsiderando, inclusive, alguns posicionamentos da própria Universidade, quando somos consultados", lamenta.

De acordo com o Instituto do Meio Ambiente (IMA), a implantação de empreendimentos inseridos na APA de Santa Rita acontece após a manifestação do gestor da unidade de conservação e é preciso que haja conformidade no zoneamento do processo, que é encaminhado para a Gerência de Licenciamento (Gelic), responsável por fazer a análise técnica acerca da viabilidade da implantação. A fiscalização é feita pelo técnico do IMA responsável pela APA, como também pode ser realizada pela Gerência de Fiscalização e Monitoramento (GEMFI).
Após a supressão da árvore, seu plantio é difícil. A mangabeira é uma planta considerada baixa - em média atinge cinco metros - e seu crescimento é lento. Dela, além do fruto, pode-se extrair o látex, utilizado na confecção de borracha. No entanto, devido à baixa produção do material, a retirada da matéria-prima da borracha é inviável economicamente, principalmente se comparada à seringueira. 
"Tanto o ouricurizeiro quanto a mangabeira estão sendo destruídos para dar lugar a construções urbanas. Quando um ambiente natural é devastado, dificilmente ele se recupera, afetando assim a flora e a fauna, causando desequilíbrio no local, já que estes frutos servem de alimento para os animais que circulam na região", afirma Moura. 
Para ela, além desta perda direta na natureza, o descaso com essas plantas que dão frutos tão importantes tem deixado de lado a oportunidade de transformar estes alimentos em produtos que movimentem a economia de maneira sustentável. A professora acredita que seria possível a criação de uma cadeia produtiva capaz de gerar renda, preservar as árvores, valorizar os produtos e manter a cultura regional. 


Umbuzada é um prato muito apreciado pela população do Sertão

Umbu e caju também tiveram produção reduzida em Alagoas

De forma menos agressiva, o umbu e o caju também tiveram suas produções reduzidas em Alagoas nos últimos anos, o que acende um sinal de alerta de ambientalistas e estudiosos do assunto. 
"Estamos acompanhando a redução significativa de algumas espécies. De dois anos pra cá, por exemplo, percebemos uma diminuição da produção de caju no estado. E com o umbu, que é típico da região do Sertão, não é diferente. A parte nativa do ecossistema tem dado lugar a imóveis. E se não se trata de uma área de reserva, fica difícil proteger e evitar a devastação", ressalta a curadora do Herbário MAC do Instituto do Meio Ambiente (IMA) de Alagoas, Rosângela Lyra. 
Ela conta que não existem estudos científicos que comprovem a diminuição do número de frutíferas dessas espécies, mas destaca que o mercado é o reflexo do plantio. Se o caju não é achado mais tão facilmente nas bancas de frutas, algo errado está acontecendo. 
Além do suco e do doce, do caju também é extraída a castanha, que quando torrada, dá um toque especial a pratos antes considerados comuns, como saladas. Deliciosas, elas também são muito recomendadas por nutricionistas, que a indicam como lanche aos pacientes que buscam uma dieta mais equilibrada. O detalhe é que as castanhas comercializadas em Alagoas vêm de outros estados, como o Rio Grande do Norte, já que a produção de caju nas cidades alagoanas é insuficiente para dar conta da demanda. Fato que encarece o preço do produto, que chega a custar em média R$ 60,00 o quilo.  


Pés de umbu estão desaparecendo no Sertão de Alagoas


Já o umbuzeiro é uma planta típica do Sertão, bastante tolerante à seca e muito respeitada pelos sertanejos, que têm nela a fonte de energia e matéria-prima para o prato típico chamado umbuzada - mistura de umbu, leite e açúcar muito consumida na região. O umbu também é útil na medicina popular, que costuma aproveitar suas raízes para combater uma doença conhecida como escorbuto, caracterizada por hemorragia nas gengivas provocada por falta de vitamina C.
"O povo do Sertão sabe valorizar muito bem a natureza. Embora muitas destas árvores tenham sido cortadas para dar lugar ao pasto e à agricultura, o umbu é o fruto que corre um risco menor de desaparecer. É uma árvore que resiste muito bem a anos de seca, por armazenar bastante água em suas raízes, talvez por isso seja tida como uma representação do Sertão", informa a ecologista da Ufal.
Maria Odete destaca a importância do Umbu e diz que
quantidade do fruto diminuiu
Mesmo diante disso, a aposentada Maria Odete Xavier, 68 anos, moradora do Distrito do Tingui, em Água Branca, reconhece que muitas árvores, entre elas o umbuzeiro, diminuíram consideravelmente na localidade. O motivo? A substituição da mata nativa por pastos e roças. "Ainda tem a seca prolongada, que devasta a região. Muitos umbuzeiros não resistem à falta d'água e morrem", conta.
Ela diz ainda que o umbu sempre fez parte das refeições da família. "Com ele dá para fazer umbuzada, suco, doce, polpa e até geleia. Na nossa região, a maioria das famílias planta apenas para o próprio consumo e poucas vendem na feira", diz, ressaltando que o fruto não é comercializado em grande quantidade por causa da pequena produção.

População do caranguejo guaiamum diminui nos manguezais


Frutos do mar somem da natureza e dos cardápios

Mas não apenas os elementos da flora são afetados pelas condições ambientais precárias. Os animais também sofrem e desaparecem, deixando os seres humanos órfãos de iguarias insubstituíveis, como é o caso da pituzada. A pesca predatória fez com que o pitu - base para o prato que deixa qualquer um com água na boca -  entrasse para a lista dos animais ameaçados de extinção. A pesca desse animal agora é proibida. 
Crustáceo de água doce, o pitu sempre foi muito apreciado não só na culinária alagoana, mas em todo o Nordeste. Com a diminuição da população desses animais em locais como a Região do São Francisco, em Alagoas, a pesca acabou sendo vetada pelo Ministério do Meio Ambiente, como uma tentativa de preservar a espécie para que ela não desapareça por completo.
De acordo com a bióloga do Núcleo de Fauna do Instituto do Meio Ambiente (IMA), Gabriela Gama, uma das causas do desaparecimento desses animais é a sobrepesca, ou pesca excessiva, que não dá margem para que a espécie possa se recompor. "O pitu era bastante encontrado na Região do São Francisco, mas hoje tornou-se raro", diz a bióloga para justificar o desaparecimento do crustáceo das mesas dos alagoanos. 

              Pituzada não está mais sendo comercializada em restaurantes
Assim também acontece com o caranguejo guaiamum, que chegou a ter a comercialização proibida em todo o país pelo Ministério do Meio Ambiente, que voltou atrás no final deste mês de abril e reconsiderou a decisão, permitindo que os machos da espécie possam ser pescados. As fêmeas e os filhotes, no entanto, não podem ser comercializados. O motivo da proibição? A diminuição do desembarque do crustáceo, ou seja, a redução do número de animais pescados em determinados períodos, o que significa a existência cada vez menor da espécie em seu habitat natural, os manguezais.
Gabriela Gama ressalta que, entre dezembro de 2016 e março de 2017, enquanto a proibição da pesca do animal independentemente do sexo estava em vigor, muitos foram os estabelecimentos autuados e multados em Alagoas pelos órgãos ambientais. Um exemplo do desrespeito às leis que visam à proteção das espécies, apesar de a multa ser considerada alta, no valor de R$  5 mil por cada indivíduo encontrado. No caso da captura em uma Unidade de Conservação, essa sanção sobe para R$ 10 mil por animal. 
"Não existe um plano de manejo sustentável da espécie e isso acaba dificultando tudo", ressalta Gabriela, que destaca ainda os riscos de desaparecimento de animais silvestres que são caçados de forma indiscriminada em diversas regiões de Alagoas, como é o caso do tatu. Ela lembra que a caça desses bichos é proibida e que existem criadouros autorizados a vender determinados tipos de carnes, como a de jacaré e do próprio tatu. "Quem quiser consumir um produto mais exótico deve procurar um vendedor autorizado, onde pode ser encontrada carne de procedência", completa.

Juliana Almeida destaca importância dos elementos da terra para a culinária alagoana




Identidade alagoana na gastronomia


Para a chef de cozinha Juliana Almeida, que usa muitos produtos da terra em seus pratos, a proibição da comercialização do guaiamum e do pitu refletem de maneira expressiva na gastronomia Alagoana. "São perdas que nos obrigam a procurar alternativas", destaca a profissional, ressaltando como características da culinária do estado a simplicidade e a rusticidade.

Juliana cita ainda a importância de valorizar os produtos da terra para trazer identidade para os pratos criados em Alagoas. 
"Usar produtos da terra é valorizar o que é nosso e trazer identidade à nossa gastronomia. Alagoas reúne um verdadeiro banquete de mar e lagoas que transformam a culinária local em algo atraente, sedutor e de sabores surpreendentes. Isso é uma referência local. Característica importantíssima na construção do formato gastronômico de cada região", pontua.
Fonte: GazetaWeb
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