Ação predatória do homem e a falta de planejamento para o crescimento das cidades são apontadas como causas para o problema
A gastronomia alagoana está ficando mais pobre. Com o desmatamento, a degradação, a caça e a pesca predatórias, além do crescimento desordenado das cidades, animais e frutos que são a base de pratos típicos do estado estão, aos poucos, desaparecendo. Antes abundantes, frutas como o ouricuri, a mangaba e o umbu não mais são encontradas tão facilmente. Animais também estão sumindo das lagoas e mangues - ecossistemas tão maltratados pelo homem - a ponto de a pesca ser proibida ou permitida apenas de forma restrita, como é o caso do caranguejo Guaiamum. A devastação está levando consigo não só os elementos da fauna e da flora, mas retirando o sabor de iguarias da culinária de Alagoas.
O problema já existe há algum tempo, mas vem se agravando, a ponto de os empresários que trabalham no ramo precisarem comprar matéria-prima de outros estados para conseguir produzir as delícias da culinária alagoana. É o caso do Engenho e Restaurante São Lourenço, localizado na cidade de Água Branca, que tem como matéria-prima para suas receitas diversos elementos típicos do Sertão. Um deles é o ouricuri, tipo de coco que serve como base para a fabricação de um sorvete que é um dos carros-chefes da casa.
Fabricada de maneira artesanal, assim como todos os produtos comercializados no estabelecimento, a sobremesa tem um sabor marcante e é bem aceita pelos clientes. O gerente de marketing Igor Brandão conta que o doce é produzido há sete anos e já se tornou tradicional na localidade. Com uma dificuldade cada vez maior para comprar o ouricuri em grande quantidade, ele explica que esse é o único prato que tem o coquinho como base, apesar de que ele poderia ser usado em muitas outras iguarias - como na fabricação de cocadas.
Brandão diz que o fruto é geralmente comprado nas feiras-livres da região, mas às vezes, com uma quantidade limitada disponível, surge a necessidade de trazê-lo da cidade de Paulo Afonso, na Bahia. "A produção em Alagoas é derivada da agricultura familiar de subsistência. O ouricurizeiro é cultivado por famílias quilombolas em Água Branca, que além de comercializarem os frutos, também utilizam as palhas da planta para produção de artesanato. Algumas vezes, já compramos essa matéria-prima da Bahia porque não encontramos quantidade suficiente por aqui", explica.
Especialistas apontam como causas do problema a expansão imobiliária e a atividade de pasto, que têm ocupado os espaços que antes eram das palmeiras - planta que estava presente em todo o litoral de Alagoas, além da Região do Agreste, Médio Sertão inteiro e parte do Alto Sertão. Típico de solo arenoso, o ouricurizeiro é muito usado na confecção de produtos artesanais, fato que também tem contribuído para o seu desaparecimento, pois a retirada das folhas para este fim e para a confecção de vassouras tem diminuído a produção de frutos.
Como se todos esses problemas fossem poucos, há ainda a seca prolongada, que tem feito com que as folhas do ouricuri - planta bastante resistente à períodos de longa estiagem - sejam dadas como alimentos para o gado, o que interfere diretamente na produção dos coquinhos. Para se ter uma ideia, em boas condições, um pé de ouricuri chega a colocar de 2 a 3 mil frutos por ano. Com a retirada das folhas, esse quantitativo cai para, no máximo, 200 cocos.
Além de servir de base para produção de algumas delícias, o ouricuri ainda cumpre um papel importante no bioma da caatinga, no qual está inserido. Ele serve de alimento para espécies de aves, como araras e papagaios, mantendo um ecossistema equilibrado. Com o seu desaparecimento, esses animais também tendem a sofrer as consequências.
Ecossistemas nativos estão sendo substituídos
A professora de Ecologia e Meio Ambiente da Universidade Federal de Alagoas, doutora em ecologia e recursos naturais, Flávia Moura, confirma o desaparecimento gradual de algumas espécies de plantas utilizadas na culinária do estado. Segundo ela, a substituição de florestas e ecossistemas nativos pela agricultura de subsistência é uma realidade em Alagoas que tem contribuído para o desmatamento de espécies antes bastante comuns.
Além destes problemas, a especialista reforça ainda que em Alagoas falta incentivo por parte dos órgãos governamentais no sentido de se criar cooperativas que possam fomentar o beneficiamento da produção destes alimentos. "A quebra do ouricuri, por exemplo, é feita toda manualmente. Aqui em Alagoas não existe um maquinário específico para isso. Se houvesse um investimento público ou privado para se fazer uma máquina de quebrar coco, como a que existe na Bahia, esses catadores teriam este produto beneficiado rapidamente e eu tenho certeza que ele voltaria para o mercado com mais força", analisa.
Suco feito com a mangaba agrada aos diversos paladares |
De acordo com o Instituto do Meio Ambiente (IMA), a implantação de empreendimentos inseridos na APA de Santa Rita acontece após a manifestação do gestor da unidade de conservação e é preciso que haja conformidade no zoneamento do processo, que é encaminhado para a Gerência de Licenciamento (Gelic), responsável por fazer a análise técnica acerca da viabilidade da implantação. A fiscalização é feita pelo técnico do IMA responsável pela APA, como também pode ser realizada pela Gerência de Fiscalização e Monitoramento (GEMFI).
Após a supressão da árvore, seu plantio é difícil. A mangabeira é uma planta considerada baixa - em média atinge cinco metros - e seu crescimento é lento. Dela, além do fruto, pode-se extrair o látex, utilizado na confecção de borracha. No entanto, devido à baixa produção do material, a retirada da matéria-prima da borracha é inviável economicamente, principalmente se comparada à seringueira.
"Tanto o ouricurizeiro quanto a mangabeira estão sendo destruídos para dar lugar a construções urbanas. Quando um ambiente natural é devastado, dificilmente ele se recupera, afetando assim a flora e a fauna, causando desequilíbrio no local, já que estes frutos servem de alimento para os animais que circulam na região", afirma Moura.
Para ela, além desta perda direta na natureza, o descaso com essas plantas que dão frutos tão importantes tem deixado de lado a oportunidade de transformar estes alimentos em produtos que movimentem a economia de maneira sustentável. A professora acredita que seria possível a criação de uma cadeia produtiva capaz de gerar renda, preservar as árvores, valorizar os produtos e manter a cultura regional.
Umbuzada é um prato muito apreciado pela população do Sertão |
Umbu e caju também tiveram produção reduzida em Alagoas
De forma menos agressiva, o umbu e o caju também tiveram suas produções reduzidas em Alagoas nos últimos anos, o que acende um sinal de alerta de ambientalistas e estudiosos do assunto.
"Estamos acompanhando a redução significativa de algumas espécies. De dois anos pra cá, por exemplo, percebemos uma diminuição da produção de caju no estado. E com o umbu, que é típico da região do Sertão, não é diferente. A parte nativa do ecossistema tem dado lugar a imóveis. E se não se trata de uma área de reserva, fica difícil proteger e evitar a devastação", ressalta a curadora do Herbário MAC do Instituto do Meio Ambiente (IMA) de Alagoas, Rosângela Lyra.
Ela conta que não existem estudos científicos que comprovem a diminuição do número de frutíferas dessas espécies, mas destaca que o mercado é o reflexo do plantio. Se o caju não é achado mais tão facilmente nas bancas de frutas, algo errado está acontecendo.
Além do suco e do doce, do caju também é extraída a castanha, que quando torrada, dá um toque especial a pratos antes considerados comuns, como saladas. Deliciosas, elas também são muito recomendadas por nutricionistas, que a indicam como lanche aos pacientes que buscam uma dieta mais equilibrada. O detalhe é que as castanhas comercializadas em Alagoas vêm de outros estados, como o Rio Grande do Norte, já que a produção de caju nas cidades alagoanas é insuficiente para dar conta da demanda. Fato que encarece o preço do produto, que chega a custar em média R$ 60,00 o quilo.
Maria Odete destaca a importância do Umbu e diz que quantidade do fruto diminuiu |
Mesmo diante disso, a aposentada Maria Odete Xavier, 68 anos, moradora do Distrito do Tingui, em Água Branca, reconhece que muitas árvores, entre elas o umbuzeiro, diminuíram consideravelmente na localidade. O motivo? A substituição da mata nativa por pastos e roças. "Ainda tem a seca prolongada, que devasta a região. Muitos umbuzeiros não resistem à falta d'água e morrem", conta.
Ela diz ainda que o umbu sempre fez parte das refeições da família. "Com ele dá para fazer umbuzada, suco, doce, polpa e até geleia. Na nossa região, a maioria das famílias planta apenas para o próprio consumo e poucas vendem na feira", diz, ressaltando que o fruto não é comercializado em grande quantidade por causa da pequena produção.
Assim também acontece com o caranguejo guaiamum, que chegou a ter a comercialização proibida em todo o país pelo Ministério do Meio Ambiente, que voltou atrás no final deste mês de abril e reconsiderou a decisão, permitindo que os machos da espécie possam ser pescados. As fêmeas e os filhotes, no entanto, não podem ser comercializados. O motivo da proibição? A diminuição do desembarque do crustáceo, ou seja, a redução do número de animais pescados em determinados períodos, o que significa a existência cada vez menor da espécie em seu habitat natural, os manguezais.
Gabriela Gama ressalta que, entre dezembro de 2016 e março de 2017, enquanto a proibição da pesca do animal independentemente do sexo estava em vigor, muitos foram os estabelecimentos autuados e multados em Alagoas pelos órgãos ambientais. Um exemplo do desrespeito às leis que visam à proteção das espécies, apesar de a multa ser considerada alta, no valor de R$ 5 mil por cada indivíduo encontrado. No caso da captura em uma Unidade de Conservação, essa sanção sobe para R$ 10 mil por animal.
"Não existe um plano de manejo sustentável da espécie e isso acaba dificultando tudo", ressalta Gabriela, que destaca ainda os riscos de desaparecimento de animais silvestres que são caçados de forma indiscriminada em diversas regiões de Alagoas, como é o caso do tatu. Ela lembra que a caça desses bichos é proibida e que existem criadouros autorizados a vender determinados tipos de carnes, como a de jacaré e do próprio tatu. "Quem quiser consumir um produto mais exótico deve procurar um vendedor autorizado, onde pode ser encontrada carne de procedência", completa.
Fonte: GazetaWeb
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